sexta-feira, 6 de maio de 2011

Baldeação

Voltando. Com um texto antigo. Inspirada por amigos com ideias transgressoras e pela recente Virada Cultural, que mostra uma cidade do avesso, e por isso melhor, pra gente.


“Estação República. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem. Subam as escadas desviando-se dos meninos que descem pelos corrimões, cheguem nas ruas, apurem os sentidos. Cuidado ao tomar a Aurora. Essa mulher é traiçoeira. São Paulo está cheia de Augustas libidinosas, Angélicas histéricas e Ifigênias que fazem sofrer. Quem for pra esquina da Ipiranga com a São João, tome um chopp por mim. Se alguém cruzar a praça, não deixe de alternar o olhar entre o antigo colégio, com sua bela arquitetura, e o coreto que ainda resiste. Os passageiros que seguirem pela Barão ou pela 7 de abril terão mais opções: comprem um par de tênis em oferta, ouçam com calma os senhores do Universo em Desencanto, aproveitem o crédito daquela financeira que não pede comprovação de renda, não passem batido pelo pregador que anuncia a nossa verdade. Aliás, voltem para me contar. Tropecem nos camelôs, apreciem as ocupações, degustem o churrasco grego. Se a caminhada se estender até o Municipal, vocês chegaram em um dos lugares mais significativos da cidade. De um lado, o portentoso teatro, do outro, o antigo Mappin. À frente, o prédio da empresa que primeiro iluminou a cidade. Mais adiante, o viaduto que um dia ligou a São Paulo que nascia com a que viria a ser. Se o destino for outro e as curvas do Copan aparecerem de mansinho na paisagem, aproximem-se, ou melhor, distanciem-se, para vê-las por completo. E passem algum tempo indagando como o concreto pode ser tão leve. Se estão por essas bandas, difícil não verem o que foi a torre mais alta da cidade. Não se acanhem e subam e fiquem tontos e façam uma baldeação de elevador. Ao chegarem, um moço muito elegante estará esperando por vocês. Façam cara fina e dispensem o restaurante, fiquem só com a vista. Quem precisar tomar outra condução, deixe o ônibus apinhado passar e escolha o trólebus, que sobrevive. O Machado de Assis – Cardoso de Almeida leva os passageiros para bairros prazenteiros de São Paulo e também os transporta para o universo da literatura. Quem puder, tome a linha, ouço os murmúrios do tempo e aprecie os olhos de ressaca da Capitu. Falando de livros, daqui é possível dar um pulo na Mário de Andrade. O caminho á rápido, mas a visita merece horas de devaneio por entre os títulos. Agradeço quem me trouxer um Rosa. Para qualquer canto que forem, fechem as bolsas, abram a alma. Vocês estão na terra do concreto. E da poesia. Onde o medo avança e as oportunidades diminuem. Onde o carro é herói e os meninos na rua são meninos de rua. Onde o samba estrebuchou mas não morreu. Onde, de bar em bar, seguimos bebendo a teimosia de achar o cinza belo, o muro seguro e o asfalto macio.” O trem voltou a respirar. Virou-se então para o auxiliar. Algum dia teria coragem de usar melhor aquele microfone.

2 comentários:

  1. Inveja boa, querida amiga, dessa topofilia que a faz sentir-se em casa na selva de pedra paulistana. Eu, que apesar de nascido e criado aqui não conheço esse sentimento, vou sobrevivendo como posso. Beijo grande.

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