domingo, 24 de outubro de 2010

La Chascona

Nas recentes andanças pelo Chile inevitavelmente nos deparamos com La Chascona, a “desgrenhada” casa que Neruda construiu em Santiago para esconder – se esconder com – sua Matilde amante.

A casa em forma de barco era uma maneira do poeta, também amante do mar, sentir-se perto daquele universo com cheiros e movimentos tão próprios.

De amor e mar ali viveu por mais de 15 anos.

Esses dois elementos tão presentes na casa se fazem sentir pelos que se embrenham por suas escadarias e jardins e emocionam até os mais desavisados.

Quanto a mim, o sobressalto veio com a leitura do diploma que a Academia Sueca lhe concedeu em 71, por ocasião do Nobel, com a seguinte justificativa: “A Pablo Neruda, por sua poesia que, com uma força poderosa, faz possíveis os sonhos e destinos de um continente”.

Não tem antropologia que explique a sensação de pertencimento que esse breve texto evoca.

Mais de La Chascona e de Neruda em http://www.fundacionneruda.org/historia_chascona.htm

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

San Pedro de Atacama

No pequeno povoado velado pelo Likancabur. Nas ruas esteira de poeira. Na vastidao do deserto que encontra vida em flamingos multicores. No pôr de sol violáceo montanha abaixo. Na paisagem lunar, estranha, insólita. Numa cidade cenário das histórias de Juan Rulfo. Num chao sempre em chamas. Sob um céu que se faz estrelas. Sobre 4900 metros de altitude. Nao escrevo. Apenas penso. Te penso.

Ps.: Nao precisava, mas nao resisto a fazer a ressalva de que no teclado atacameño nao existe o nosso querido acento nasal.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Apócrifo

Escrevi e reescrevi o conto, mexe daqui, lapida de lá. Mas parece que forma alguma dá conta da pungência de algumas histórias proclamadas como reais. Eis então os fatos. Esperando que de fato alguém os conte.

Maria empoleirou-se no muro para xeretar o silêncio suspeito da casa vizinha. Deparou-se com a menina mirrada que, com força e acuidade, deslizava pela parte posterior da perna, sem sinais de dor, o caco de vidro que arrancava a pele negra que tanto a torturava, expondo a todos as chagas vermelhas que nunca seriam curadas. Maria desempoleirou do muro, guardou o coração no peito e jamais voltou a chorar.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A maçã e o bibelô

O olhar de Alice insistia no bibelô exposto na prateleira. O braço magrela de Joaquim apontava com veemência o doce ao lado. E Joana, atordoada que estava, ficava a admirar os dois irmãos, pensando na séria decisão que deveria tomar, sem muita demora.

Naquele breve instante em que teria que escolher entre Alice, a irmã do meio, e Joaquim, o caçula, Joana foi fisgada pelas imagens das cenas que dividira com os pequenos nos anos de pobreza e desencanto.

Lembrou do dia em que Joaquim deixara a família apavorada quando, noite já, o menino e sua bicicleta velha não voltaram para casa. Cada um saiu a um canto a buscá-lo. E a Joana coube a sorte, e o desespero, de encontrá-lo. É que Joaquim tinha deixado seu bairro para trás a fim de se aventurar pelo centro da cidade. E, no momento em que a irmã o avistou, estava a cruzar a avenida movimentada, com sua inocência, franzinisse e inabilidade para transitar por esses espaços repletos de máquinas poderosas e ruídos dissonantes. Joana reconheceu-o no instante em que um carro lambia-lhe as pernas, quase a ponto de deixá-lo estatelado no asfalto, sem que ele sequer percebesse. Os olhos distraídos acharam o da irmã. A bicicleta correu mais rápido. E Joana o recebeu aliviada, já pensando em como encobriria dos pais a arte do irmão.

A lembrança emocionou Joana. E a maçã, na prateleira próxima, tão ao alcance das mãos, se fez mais vermelha e perfumada. Joaquim já sentia seu gosto lambuzado na boca amarga, que tão poucas delícias havia experimentado na sua curta infância.

Joana insinuou uma decisão, mas as mãos de Alice logo a procuraram. As mesmas mãos que, poucos meses atrás, cobertas de picadas de formiga vermelha, chegaram para receber os cuidados da irmã mais velha. Joana correu para o quintal, colheu a planta que, na falta de remédios caros e drogas apropriadas, servia para curar a família de qualquer mal e, emplastro preparado, aplicou com carinho nas feridas de Alice. O curativo, feito com mais amor que precisão, atenuou as picadas e levou a dor da menina embora. Alice agradeceu ficando em silêncio ao seu lado por longos minutos, enquanto Joana engasgava um sorriso.

A cena era nítida na recordação de Joana e, naquele instante, o bibelô pareceu-lhe tão gracioso! Seus contornos de gesso ficaram mais precisos. Joana teve a impressão de que a saia da bailarina começou a rodar. E Alice já se sentiu dona do pequeno enfeite, que colocaria na cômoda em que guardava as roupas ralas e alguns sonhos, para adornar sua vida sem cor.

Joana arriscou uma palavra. Joaquim esboçou um choro. E a irmã, que vivia para guardar a esperança daqueles dois, sentiu pesar a responsabilidade da escolha, primeira de tantas por fazer vida a fora. Joana então pensou que não tinha o direito de optar entre o desejo de um irmão e outro.

Entre Joaquim, para quem a maçã representava todas as guloseimas que não comera, todos os sabores de que fora privado numa vida de carências e desconsolo. E entre Alice, que via no bibelô os brinquedos que jamais ganharia, o presente que era a materialidade das suas ambições de menina. Entre uma maçã caramelada que acabaria antes mesmo de chegarem em casa. E um bibelô que viveria até o momento em que algum desavisado puxasse com mais força a gaveta da cômoda. Entre um sabor que talvez animasse uma vida que tanta tristeza já encerrava. E um enfeite que, quem sabe?, poderia deitar uma esperança, ainda que miúda, nos caminhos da pequena.

Não importava ter a maçã a casca dura e açucarada por demais. Nem o fato do bibelô ser quase feio, uma dançarina mal pintada e cabisbaixa diante de tantas iguais a ela. A irmã mais velha também via na sobremesa primária, no mal composto objeto, a realização dos seus próprios anseios.

E, ali, Joana odiou ter acertado o alvo que deu a ela o direito de escolher uma prenda naquela tão aguardada festa junina. E para não decepcionar um ou outro, devolveu o bilhete. Renunciou à bailarina. Negou o doce. Puxou os irmãos e voltou para casa. Que lá haveria miséria igual aos dois.