terça-feira, 21 de setembro de 2010

A bailarina

Uma bailarina que sem pés passeia.
A imagem, surrupiada do poema A Vaga, da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, provoca estranhamento, mas é inequívoca em sua beleza. Difícil conceber uma bailarina, cujo ofício é dançar, desprovida dos elementos que lhe conferem essa condição. A suavidade provocada pela aliteração em s, no entanto, permite a construção de uma bailarina etérea, pairando sobre um imaginário palco, criando uma bonita visão, que em nada remete a uma mulher mutilada, como a linguagem, do ponto de vista estritamente semântico, poderia nos levar a pensar.
Eis a particularidade, e a provocação, do texto poético.
Eis a promessa da boa poesia.

Mais de Sophia em www.astormentas.com/andresen.htm

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Paixão pela poesia

Eis o texto premiado, em 2002, pela Academia Brasileira de Letras. Como se pode ver, imortais também erram. E a gente muda. Para o bem dos leitores...

O que é ela senão deleite? Construção imagética. Mistura de palavras. Metáfora. Com ou sem rima. Metonímia. Que exalta a lua, sem acobertar o sol. Que louva a beleza, sabendo reconhecer e dignificar o dito feio. Poesia. Prosa ousada que extrapola, sensível e instigantemente, a alegoria. Poesia.

Como não nos apaixonarmos pelo texto que se apresenta em versos metrificados, em rimas alternadas, em estrofes sonéticas? Que evocam sensações, imagens e cheiros. Que nos remetem à infância e nos lançam ao futuro. Que, despretensiosamente, nos aspiram para um universo inimaginável. Ou para um mundo repleto de coisas identificáveis, porém com outra cor.

Se incompreensível, de cunho estético ou moral, ou se mera junção de vocábulos desconexos, a poesia sempre transcende, excede. E o consegue simplesmente por possuir interlocutor preciso: a alma. E para falar ao espírito, brando ou atordoado, mais que palavras rebuscadas e versos simétricos, é necessário paixão.

Há que se revirar lembranças, alegres ou doloridas. Que realizar uma verdadeira garimpagem nas caixas e gavetas esquecidas e também pelas experiências ainda acesas. E depois, transcrever os sentimentos, os encontros. Não há necessidade de ser claro ou conciso na poesia. Sua função é despertar, causar, provocar, machucar talvez.

E como não nos envolvermos, num tórrido e tresloucado romance, com os objetos, motes, musas da poesia? Como deixarmos passar desapercebidos a etérea Beatriz do Chico, a suave Luisa do Tom, o cativante Severino do João Cabral? Como fingirmos indiferença a esses personagens que, de tão bem descritos e esmiuçados, muitas das vezes com poucas mas valiosas palavras, povoam nossa memória, contracenam conosco.

E ainda, como não nos enlouquecermos pelo poeta? Como não nos compadecermos de seu doloroso ato de ora vomitar ora assoprar palavras? Palavras que brincam na mente, deslizam pela língua e dançam no papel até tomar forma. E aí renegam seu criador, declaram-se independentes, saem a passear pelos recônditos inexploráveis do homem. Buscam qualquer lugar em que possam causar eco, de onde consigam arrancar emoções, mesmo que doídas.

A paixão pela poesia pressupõe paixão pelas manifestações simples e pungentes da vida. Mas, apesar dos motivos apresentados, é possível que um leitor exigente ou desavisado continue irresoluto, titubeante quanto ao regozijo de viver e comer poesia. Para eles, ouso oferecer uma receita.

Tente acordar uma hora mais cedo que a costumeira e, prostrado na janela de casa, faça uma surpresa ao sol. Esteja a sua espera quando ele aparecer, laranja, em meio a um céu lilás. Caminhe, cabelos ao vento, logo pela manhã, e sinta aquele ar de prelúdio de outono resfriar as faces, adentrar as narinas. Observe, com um olhar flaneur, o cão do vizinho (se você mirá-lo de perto, verá que está sorrindo). Solte os braços. Se ninguém estiver olhando, pegue uma cuca do chão e tente acertar um alvo invisível. Se alguém o admirar, faça dele o alvo, mas só de brincadeira, pra tentar arrancar uma risada aflita. Chegue atrasado no trabalho, por ter feito amor até mais tarde, ou por ter levado o lanche para o filho na escola, mas faça cara de preocupação. Leia, de cordel a Kafka. Invente códigos secretos com os amigos. Viaje, de carona e de barraca. Entregue-se às paixões, aos delírios, aos devaneios. Construa uma família, pinte um quadro, um borrão que seja. Conte estrelas. Saia de casa, só pra poder voltar sempre. Ame. O amante, a mãe, o porteiro. Beije. O amigo, o patrão. Ouça. Os latidos, a música, o coração. Permita-se sempre. Viva de forma a colecionar histórias para contar, não aos outros, mas a você mesmo, quando, no epílogo de sua existência, estiver a apreciar o mar, numa bela manhã de segunda.

E ao se emocionar com essas miudezas do dia-a-dia, descobrir-se-á fervoroso amante da poesia. Cúmplice das palavras lapidadas. Namorado dos versos. Admirador secreto de sonetos. E ainda, um poeta potencial. Mas se, por fim, não estiver convencido do benefício desta arte, abra uma Cecília. É tiro e queda.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Cidade limpa, cidade nua

Marcaram de se encontrar no domingo, no Minhocão, embaixo da Daniella Cicarelli. Era a primeira vez que se veriam sem ser no trabalho. Escolheram algo inocente, um passeio vespertino por um lugar inusitado da cidade. O assunto estaria garantido, pelo menos de início. Algo como “passo por aqui todo dia de carro mas a pé é outra perspectiva...” provavelmente iniciaria a conversa. Ele chegou primeiro. Tomou a direção da Consolação, olhando para os dois lados. Viu prédio pintado de fuligem, torre do Banespa ao longe, varal, cachorro debruçado na grade. Galhos nascendo das entranhas do viaduto. Janelas que permitiam espiar as salas dos moradores, invadidas pelo dióxido de carbono e pela desvalorização. Mas não viu a Cicarelli. Viu fachadas velhas à mostra, outras recém-pintadas, um cartaz de filme despencando no horizonte. Mas não viu a modelo que, ele se lembrava bem, estava quase nua. A igreja despontou e ele percebeu que já chegava ao final da pista. Sem achar o local do encontro. Resolveu voltar, caminhar até a outra ponta, sentido Lapa. Queria estar logo com a Rose, de roupa mesmo. Foi no instante em que ele se afastava, que ela chegou. No mesmo canto da via, pelo centro, arfando. Lembrava que a Cicarelli ficava no meio da extensão do viaduto. E se pôs a caminhar, 3,4 quilômetros a sua frente, meio atrasada. Andava observando o entorno, e nada da modelo. Viu homens musculosos se exercitando nas varandas miúdas, quase trombou com umas crianças de patins, admirou a alegria das pessoas que se enredavam pelos churrasquinhos, forrós e outros acepipes. Viu um mundo que ela desconhecia. Mas a Cicarelli não fazia mais parte da festa. Tropeçou nas protuberâncias do asfalto. Admirou-se com os meninos que tomavam sol no canteiro-central-espreguiçadeira do viaduto. Riu com os travestis que terminavam a noite anterior quando o sol de hoje já se punha. Brincou com o cachorro arrebitado que levava o dono para passear naquela tarde quente. Lembrou que tinha uma bicicleta em casa que merecia desenferrujar. Viu o estranho, o inesperado. E o Marcos, lá longe, que voltava correndo. Viu, espantada e alegre, as fímbrias da metrópole expostas. Mas nada da Daniella Cicarelli. Quem estava ali, nua, era a cidade.

domingo, 12 de setembro de 2010

Com a luz

Há coisas que, quando nos são reveladas, oferecem a sensação benfazeja que diz que é possível, sim, apostar na coerência da vida. Foi assim no dia em que descobri o significado literal da palavra fotografia. Nada mais preciso e bonito que escrever com a luz.

Confira fotos escritas com luz e poesia no espaço da amiga Dani Baptista: http://www.flickr.com/photos/danibaptista/

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Twitter lírico

Tocou a última nota em seu sax de todos os dias. Espreitou ao redor. Recolheu as fartas moedas. Doeu-se da ausência. De aplausos.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Começar

Por que mesmo a gente acha que o primeiro post deve ser revelador, instigante, convidativo? Que deve resumir nossas intenções, propósitos e motivações? Guardar em poucas e precisas linhas a essência dos textos vindouros? Nada disso. Inaugurado o blog. Sem pretensões.